É hora de rever a Lei Complementar nº 24
Em meio a notícias de um momento econômico virtuoso, o país
se lança à procura de desenvolvimento sustentável. O afluxo de
investimentos revolve anseios antigos, inspirando os Estados a
reclamar direito de aproveitar essa onda favorável ante a
necessidade atávica pela busca do crescimento econômico,
eliminação das desigualdades regionais, erradicação da miséria,
elevação dos índices de desenvolvimento humano, objetivos
fundamentais da República, segundo o artigo 3º, III, da
Constituição Federal, que a população reclama, especialmente em
ano de eleições. Nesse cenário as disputas entre os Estados se
intensificam.
A redução ou desoneração do ICMS por meio de diferentes
mecanismos criados para contornar as restrições da Lei
Complementar (LC) nº 24, de 1975, é a arma dos Estados nessa
guerra, e prevê que a validade de incentivos ligados ao ICMS
depende da anuência de todos os Estados, por meio de convênio
firmado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
A LC nº 24 prevê que somente por unanimidade os Estados podem
criar incentivo ligado ao ICMS. Ou seja, sempre que se pretender
criar, revogar ou alterar incentivo será preciso discutir,
negociar e barganhar no Confaz.
Embora a concessão unilateral de incentivos contrarie a LC nº
24, os Estados criam e concedem incentivos variados e uma gama
de subterfúgios é criada para contornar as restrições lei, o que
leva a discussões intermináveis quanto à natureza dos benefícios
e seu enquadramento nos parâmetros da legislação tributária.
A LC nº 24 nasceu em um ambiente político-econômico
totalmente diverso do atual. Não se pode dizer que tenha
cumprido seu objetivo e se presta a legitimar reclamos de
Estados que se sentem prejudicados por outros que concedem
incentivos na tentativa de atrair investimentos e recursos.
Diferentes fatores históricos levaram a essa situação e os
Estados mais desenvolvidos não aceitam perder espaço e apoiam-se
na lei para se defender. Os mais fragilizados buscam na
desigualdade legitimidade para conquistar seu espaço. E assim a
guerra fiscal viceja, sem freios. Tréguas vêm e vão, atendendo a
interesses momentâneos, fruto de acordos isolados e ocasionais.
Os efeitos colaterais negativos acabam superando as vantagens. A
situação se afigura uma pedra no caminho do País na busca do
desenvolvimento sustentável, em que se depende de segurança e
previsibilidade, sem o que não se pode planejar nada.
Os Estados procuram ocultar os detalhes de seus programas de
incentivos para prevenir contestações na Justiça quanto à
validade dos incentivos. Aprovados pelas assembléias
legislativas dos Estados, em princípio esses incentivos nascem
válidos e eficazes, até que o Supremo Tribunal Federal (STF)
diga o contrário. As disputas políticas e o receio de que se as
questões não sejam resolvidas rapidamente, ou o impasse político
impeça a solução buscada, levam os Estados a aterrorizar
contribuintes e a negar-lhes o direito ao crédito de ICMS
supostamente incentivado pelo Estado de origem. Como não podem
atingir diretamente os Estados adversários, atingem os
contribuintes. A pressão da concorrência comercial leva todos a
arriscar, ainda mais sabendo que de tempos em tempos anistias
virão.
A imprensa noticiou que os Estados de São Paulo e Espírito
Santo chegaram a um acordo no Confaz quanto a uma antiga disputa
relacionado ao ICMS na importação. Esse acordo supostamente
compõe as relações entre os dois Estados e os contribuintes
afetados pelas consequências dessa disputa pelo ICMS na
importação. São Paulo jamais se conformou com o Programa Fundap
-Fundo de Atividades Portuárias. Criado pelo Espírito Santo no
início dos anos 70, oferece incentivos ligados ao ICMS para
empresas importadoras. Contribuintes de outros Estados que
compraram mercadorias de empresas participantes do Fundap, e
foram penalizados por seus Estados, continuam a enfrentar as
mesmas consequências. Esse acordo, se confirmado, equacionará
somente o problema entre São Paulo e Espírito Santo. Uma
situação de iniquidade se cria, em razão das imperfeições do
sistema e da LC nº 24, acirrando as batalhas judiciais já em
curso.
Para compreender isto, compare-se a inusitada situação de um
contribuinte que tenha importado mercadorias pelo Espírito Santo
e outras por algum Estado que também conceda incentivos em
condições assemelhadas às do Fundap, e esteja sendo cobrado pelo
Fisco paulista do valor do ICMS reduzido na origem, e/ou o ICMS
na importação. Os débitos tributários cobrados sobre mercadorias
provenientes do Espírito Santo serão provavelmente cancelados.
Os outros, não. A menos que outros Estados consigam no Confaz
costurar um acordo similar, ou um longo processo traga uma
decisão. Essa situação não é razoável e deriva do modelo hoje em
vigor.
Uma política de desenvolvimento econômico ampla deveria ser
buscada em âmbito nacional e rediscutido o pacto federativo.
Vocações naturais de cada Estado respeitadas, dando meios aos
menos desenvolvidos para concorrer e assim repensar o uso de
instrumentos legais de fomento ao desenvolvimento de forma
sistêmica, assegurando a composição de interesses antagônicos.
As regras criadas em meados dos anos 70, em ambiente
político-econômico diferente do atual, não mais atendem aos
objetivos para os quais foram criadas. Há de se fazer um ajuste,
de forma a sintonizá-las à realidade atual. O modelo existente,
em torno do Confaz e da LC nº 24, merece ser revisto. É razoável
permitir aos Estados conceder incentivos fiscais unilateralmente
para atrair investimentos e com isso buscar seu quinhão de
desenvolvimento, dentro de condições e parâmetros conhecidos.
Caso todos possam criar seus incentivos respeitados limites e
condições gerais claros, de maneira transparente, será possível
desarticular a guerra fiscal.
Certamente uma medida assim geraria resistências. No entanto,
deve-se buscar o interesse maior da população, para que cesse a
irracionalidade, em que contribuintes são injustamente
penalizados como reféns nessa guerra, e Estados vejam seu
direito ao uso de medida de fomento negado por apenas um voto no
Confaz. Tampouco é moralmente admissível que um Estado que
concede incentivos sem autorização em convênio conteste a
validade de incentivo de outros sob o argumento da falta de
convênio.
Atualmente, os Estados concedem seus incentivos reduzindo o
ICMS, por tempo determinado, conforme as características
específicas de projetos de investimento. Poder-se-ia prever que
Estados menos desenvolvidos, para obterem alguma vantagem
competitiva teriam direito de conceder redução ou isenção do
ICMS até um limite maior que aquele reservado a Estados mais
desenvolvidos, que naturalmente atraem os investimentos pela sua
condição privilegiada.
A lei deveria tratar de outras formas de incentivos, seus
requisitos, prazo de fruição, exigências para os investimentos,
as contrapartidas dos projetos incentivados, assim como
mecanismos para se evitar abusos e mudanças para outras regiões
quando esgotados os incentivos. Há de se impor regras e
parâmetros, até para coibir a rivalidade predatória e incontida.
A mudança que se sugere seria focada no modelo de criação de
incentivos ligados ao ICMS como instrumento de fomento para os
Estados, com transparência e limites claros. Essa medida poderia
refrear a guerra fiscal e abrir caminho para que fossem
alcançados os objetivos da República, preconizados no artigo 3º
, III, da Constituição.