Contribuinte pode se recusar a entregar extrato
A fiscalização tributária vem se tornando cada vez mais
audaciosa na arte de desrespeitar os direitos do contribuinte,
quer estes sejam pessoas físicas ou jurídicas. Não satisfeitos em
ignorar propositadamente os limites legais de sua atuação, agentes
fiscais chegam ao absurdo de exigir o cumprimento de normas
inexistentes, inverter o ônus da prova e até mesmo amparar suas
pretensões em textos interpretados de forma totalmente distorcida.
Em determinada ocasião um contribuinte recebeu intimação assinada
por um auditor fiscal da Receita Federal, onde se exigia
apresentação de extratos bancários e que se comprovasse a origem
dos recursos depositados ou creditados nas contas bancárias. Na
intimação, o Fisco alegava que sua pretensão estaria fundamentada
nos artigos 841, 844, 904, 911, 927 e 928 do vigente Regulamento
do Imposto de Renda (Decreto 3.000/99). Todavia, o contribuinte
não está obrigado legalmente ao atendimento da intimação. Os
extratos bancários não são documentos no sentido legal do termo.
Não há lei que obrigue o contribuinte a conservá-los. Aliás,
desses papéis invariavelmente consta a expressão “extrato para
simples conferência”, o que por si só revela que se trata de um
papel que não cria obrigações nem gera direitos. Tanto assim, que
se alguém tiver um lançamento em seu extrato feito de forma
equivocada, isso não o transforma em credor ou devedor da quantia
lançada. Enganos em extratos são muito comuns, por isso que nas
empresas é comum realizar-se diariamente uma conciliação das
contas bancárias. As pessoas jurídicas não fazem contabilidade com
base em extratos, mas tão somente através de documentos, sejam
cópias de cheques, comprovantes de depósitos, avisos de
lançamento, etc. A vasta indicação de artigos do regulamento com
os quais o fisco procura amparar sua atuação já demonstra, por si
só, a fragilidade da forma de fiscalização. São seis artigos (841,
844, 904, 911, 927 e 928), mas nenhum deles menciona a palavra
extrato. O artigo 841 diz que pode o Fisco fazer o lançamento de
ofício quando o contribuinte não apresentar declaração de
rendimentos, deixar de atender ao pedido de esclarecimentos que
lhe for dirigido, recusar-se a prestá-los ou não os prestar
satisfatoriamente, fizer declaração inexata, não pagar o imposto
corretamente, ou omitir receitas. O artigo 844 trata do lançamento
e fala em prestar esclarecimentos, não em fornecer documentos,
menos ainda em relação a extratos bancários. O artigo 904 cuida
apenas da competência funcional dos servidores fazendários, em
nenhum momento instituindo qualquer obrigação para o contribuinte
apresentar documentos ou prestar informações. O artigo 911 trata
do objeto do trabalho fiscal, definindo quais os exames que os
auditores podem fazer. Não traz nenhuma norma relacionada com a
obrigatoriedade de exibição de extratos. O artigo 927 diz que as
pessoas físicas ou jurídicas, contribuintes ou não, são obrigadas
a prestar as informações e os esclarecimentos exigidos pelos
auditores-fiscais do Tesouro Nacional. Prestar informações não
significa entregar extratos. Dar esclarecimentos não é o mesmo que
“...comprovar, mediante apresentação de documentação hábil e
idônea, a origem dos recursos...” . Assim, claro está que o texto
regulamentar não é o fundamento exato e preciso que possa
transferir para o contribuinte uma obrigação de entregar extratos
ou mesmo de “...comprovar, mediante apresentação de documentação
hábil e idônea, a origem dos recursos...” o que, obviamente, não
se pode confundir com “prestar esclarecimentos”... Finalmente, o
artigo 928 é muito claro ao determinar que a pessoa física ou
jurídica, contribuinte ou não, deverá “fornecer, nos prazos
marcados, as informações ou esclarecimentos solicitados”. Como já
se demonstrou, essa obrigação não se confunde com outra, de
entregar extratos bancários ou comprovar origem de supostos
depósitos. A Constituição Federal ordena, no inciso 5º , inciso II
, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei.” O princípio da legalidade absoluta é
cláusula pétrea da Carta Magna e de observância obrigatória pela
administração pública, como expressamente determina ainda o artigo
37 . Não existe, pois, a obrigação de entregar extratos bancários,
porque nenhuma lei expressamente o ordena. O exame atento das
normas regulamentares resulta em inexistência de qualquer
obrigação para que o requerente forneça extratos bancários, os
quais não são sequer de conservação obrigatória. O artigo 911
trata de “documentos de contabilidade”, o que, como é óbvio, não
inclui os extratos. O contribuinte não é obrigado a guardar
extratos e pode após sua conferência destruí-los. Não está
obrigado, ainda, a produzir prova negativa ou mesmo comprovação de
origem de movimentação financeira. Cabe exclusivamente ao Fisco
promover as diligências e investigações a seu cargo, nos estritos
termos da lei. Na obra coletiva “O Princípio da Moralidade no
Direito Tributário” (Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,
1998, 2ª edição, pág. 21) ensina o eminente professor Ives Gandra
da Silva Martins: “A defesa do Erário não pode ser ilegal, nem a
fiscalização arbitrária”. Ora, ao exigir do contribuinte a
exibição de extratos, sem que a lei expressamente o permita, e
ainda pretender que o contribuinte comprove origem de recursos que
são confundidos com suposta movimentação financeira , o Fisco
viola a norma de conduta que lhe é obrigatória por força do
Decreto federal 1.171/1994 que, ao fixar Código de Ética para os
servidores públicos federais, determina : “II – O servidor público
não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta...”
“IX – A cortesia, a boa vontade, o cuidado e o tempo dedicados ao
serviço público caracterizam o esforço pela disciplina. Tratar mal
uma pessoa que paga seus tributos direta ou indiretamente
significa causar-lhe dano moral...” Se a lei determina que o Fisco
deve comparecer ao domicílio do contribuinte para examinar seus
livros e documentos e o agente fazendário transfere para o
contribuinte um ônus de prova que a lei não lhe atribui, o
elemento ético está violado. O contribuinte não está obrigado a
produzir as provas que interessam ao Fisco, nem se obriga a fazer
o que a lei não ordena. Os cidadãos não estão subordinados aos
funcionários públicos, senão dentro dos estreitos limites da
legalidade absoluta. O relacionamento entre ambos foi bem definido
pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Edson
Vidigal em conhecida manifestação: "Quem serve ao Estado serve ao
público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é
inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do Povo, só por isso,
também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em
nossa união. O Padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são
empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o
salário do Presidente da República e dos seus Ministros, dos
Deputados e dos Senadores, dos Ministros dos Tribunais é o mesmo
que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao
assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de
um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados.
Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados
do Povo brasileiro." (in www. serpro. gov. notícias, 13.04.2004)
Hugo de Brito Machado em sua obra “Mandado de Segurança em Matéria
Tributária” (Editora Dialética, São Paulo, 2003) em cuja página
272 dá-nos preciosa lição: “O desconhecimento da teoria da prova,
ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no
processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte.
Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito
democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é
regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova,
expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são
aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo
administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito
tributário, ou procedimento administrativo de lançamento
tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de
provar a ocorrência do fato gerador.” Mesmo nas relações
Fisco-contribuinte o direito ao silêncio é assegurado. Veja-se a
seguinte decisão do STF: “O privilégio contra a auto-incriminação
– que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de
Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer
pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu,
deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do
Poder Executivo ou do Poder Judiciário. O exercício do direito de
permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a
dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera
jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa
fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio – enquanto poder
jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas
cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) –
impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou
venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de
prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado” (STF, HC n.
79.812, rel. Min. Celso de Mello, DJU de 16.2.2001,) Não cabe ao
contribuinte provar que não sonegou. Cabe apenas ao Fisco a
produção dessa prova e não pode o sujeito passivo ser coagido a
produzir prova contra si mesmo. Assim, qualquer contribuinte
(pessoa física ou jurídica) pode recusar-se a entregar extratos
bancários (que ainda os possuir) ao Fisco. Fonte: Consultor
Jurídico