Para o fisco, contribuinte é culpado até prova em contrário
Uma empresa varejista de São Paulo recebeu a visita de fiscal do
ICMS exigindo a comprovação de pagamentos de determinadas compras,
alegando que o fornecedor era “inidôneo”, pois seria uma empresa
constituída por laranjas. Segundo o fiscal, o atacadista não estava
pagando impostos e as notas seriam “frias”, razão pela qual o
varejista seria multado e poderia até ser processado criminalmente.
O fiscal achou suspeitas as provas dos pagamentos, que eram
duplicatas quitadas, parte das quais com cheques de terceiros. O
comerciante recebe em sua loja cheques de clientes e para reduzir
seus custos com a CPMF prefere cedê-los a seus credores, dentre os
quais alguns fornecedores. Na opinião do fiscal isso é indício de
sonegação.
Na semana passada, recebi um cheque em pagamento de uma consulta.
O cliente era uma pessoa jurídica, para quem eu emiti uma fatura,
tudo na forma da lei. Mas o cheque, que era ao portador, ficou no
meu bolso. Usei-o para comprar algumas garrafas de vinho numa loja
cujo dono é meu amigo que, aliás, emitiu o documento fiscal. Tudo
legal, tudo “nos conformes”. Mas se eu fosse contribuinte do ICMS o
fiscal veria aí uma suspeita de sonegação. Perante o fisco todos são
culpados até prova em contrário.
Mas até pessoas físicas podem ser vítimas dessa síndrome das
notas frias. Um pecuarista contratou ema empresa de prestação de
serviços para fazer manutenção em sua fazenda, incluindo
reconstrução de cercas, preparo de terra e plantio de gramíneas. A
empresa existe há mais de dez anos e ao consultar o seu CNPJ
verifica-se que está ativa. O pecuarista adotou, à época da
contratação as cautelas de praxe, inclusive exigindo cópia de
contrato social, certidões, embora a empresa fosse muito conhecida e
conceituada na região.
Parte dos pagamentos foi feita em dinheiro, a pedido da empresa
prestadora de serviços, pois os operários contratados não possuíam
conta bancária e nem havia agência de banco próxima da fazenda,
localizada em local distante. Anos depois o pecuarista foi multado,
sob a alegação de que a empresa era “inexistente de fato”, apesar de
regularmente inscrita em todas as repartições e até ter sido multa
pelo Ministério do Trabalho, por manter seus empregados em condições
insalubres de serviços. Segundo o fiscal federal, as notas eram
frias, porque o pecuarista pagou parte delas em dinheiro e porque a
empresa “não existe”.
Com essas presunções, que se transformam em verdadeira síndrome
que ataca os fiscais, eles partem da premissa de que todos são
culpados até prova em contrário.
Mas o fisco estadual criou um tal Sintegra, que é um mecanismo
destinado a dar alguma segurança nas pesquisas. Assim, qualquer
contribuinte deve, antes de fazer negócio com outro, verificar a
regularidade de seu fornecedor.
Todavia, em todas as respostas às consultas feitas no sistema da
Fazenda informa-se que as informações não valem como prova da
efetiva existência de fato e de direito da empresa consultada, nem
podem ser usadas contra os autos de infração. Ou seja: o Fisco não
responde por seus atos e as inscrições que fornece não servem para
nada e que todos se danem se por acaso confiarem nos registros
oficiais.
Por tudo isso, os contribuintes que forem vítimas dessa maluquice
toda, dessas presunções de culpa, enfim, dessa palhaçada onde só
fiscais estão certos e todos os outros estão errados, devem procurar
se defender, inclusive no Judiciário. Ora, o contribuinte, recebendo
mercadorias acompanhadas de notas fiscais formalmente regulares
emitidos por empresas que estejam inscritas na repartição
competente, possui razões bastante sólidas para não duvidar da
legalidade desses documentos.
Ninguém pode ser obrigado a fiscalizar seus fornecedores. O
particular não pode assumir função do Estado. Mas a administração
tem a obrigação de tornar públicas as diligências que faz, quando
estas possam interessar a terceiros, nos termos dos princípios
inseridos no artigo 37 da Constituição Federal.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, pela sua 16ª Câmara Civil, na
Apelação Cível 175.883-2/9 da Comarca de Taubaté , em 14 de abril de
1992, decidiu que não se pode cobrar do adquirente o imposto que não
tenha sido pago pelo vendedor, se a "inidoneidade" dos documentos
por este emitidos não foi divulgada mediante publicação no Diário
Oficial.
No mesmo sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça que, em decisão unânime de sua 2ª Turma, no Agravo
Regimental 73.817-RJ, decidiu que o crédito do ICMS não depende de
prova de que o fornecedor tenha pago o tributo, mas apenas de que
estava regularmente inscrito na repartição e de que o negócio tenha
sido realizado.
Há outras decisões no mesmo sentido, ou seja, segundo as quais
não pode o adquirente de mercadorias ou serviços responder pelo
tributo que não tenha sido pago pelo seu fornecedor ou vice-versa.
Assim consta, por exemplo, do RE 183.644-SP do STJ, (Relator o Min.
Milton Luiz Pereira) RE 196.581-MG (Rel. Min. Garcia Vieira), RE
176.270-MG (Rel. Min. Eliana Calmon) , RE 90.153-SP (Rel.Min. José
Delgado), etc.
Os contribuintes são cada vez vítimas de ações equivocadas do
fisco, tanto na área federal quanto estadual e municipal.
Infelizmente, muitas entidades que possuem obrigação de defender as
empresas acabam se omitindo em relação aos abusos do fisco ou
adotando posições tímidas, até porque não raras vezes seus
dirigentes são ou querem ser políticos, o que lhes turva a visão e
os inibe nas suas ações.
Concluindo: ninguém pode dizer que existam notas frias ou
documentos inidôneos simplesmente porque o fornecedor não pagou os
tributos ou mesmo em razão de ser empresa formada por supostos
“testas de ferro” ou “laranjas”. Fraude não se presume. E cabe ao
fisco provar que o adquirente esteja ciente da irregularidade ou que
estava em “conluio” com o emitente do documento. Fora disso, o que
tempos são meras presunções, meras acusações sem fundamento. Em
síntese, apenas uma disposição do fisco em achar que todos somos
culpados...