Labirinto de dívidas

A dívida total de empresas e pessoas físicas com a Previdência Social, incluindo as inscritas na Dívida Ativa da União e as que ainda estão em fase de contestação e execução, chegou em março à astronômica quantia de R$ 128 bilhões. Além da cifra em si, o que chama a atenção nos dados mais recentes do INSS — que estão sendo reprocessados para a formação de um novo banco de informações previdenciárias — é que lado a lado com débitos conhecidos e bilionários como os da Varig, uma das maiores devedoras, com R$ 1,187 bilhão, estão débitos de apenas R$ 29. Se fossem incluídas pendências esquecidas até mesmo nas listas oficiais, seria possível achar dívidas de R$ 0,25.

Isso mesmo: 25 centavos que dão muita dor de cabeça. Como a Previdência executa apenas dívidas acima de R$ 5 mil, em muitos casos essa quantia irrisória não é comunicada aos devedores, conforme relatos de empresários ouvidos pelo GLOBO, e impede a obtenção da Certidão Negativa de Débito (CND).

Sem o documento, essas pessoas não têm acesso a financiamentos de bancos públicos, não podem participar de licitação e, ao menos em tese, não podem vender o patrimônio. Ou seja, estão sujeitos às mesmas sanções, restrições e punições a que contumazes devedores de milhões de reais à Previdência deveriam ser submetidos.

Surpresas desagradáveis

Por causa de R$ 0,25, o pequeno empresário Leandro Dares, que tem uma fábrica de móveis em Ceilândia (DF), perdeu uma licitação de R$ 28 mil do governo federal porque não conseguiu obter a CND. Ele nunca soube desse débito, que compra no máximo duas balas.

A história se repetiu com o empresário Fernando Brites, que fabrica móveis para escritório e também foi impedido de participar de uma licitação. Neste caso, do Banco do Brasil, no valor de R$ 2 milhões, por conta de uma dívida de apenas R$ 3 — que não pagam nem duas passagens de ônibus no Rio.

— Isso é um absurdo porque a maioria das empresas paga em dia. O que acontece são pequenos erros de cálculos e arredondamento da folha de pagamento. As empresas não podem ser punidas por isso — protestou Brites.

De acordo com a lista de devedores que está sendo usada para atualizar o banco de dados do INSS, o total de créditos inscritos apenas na dívida ativa atingiu R$ 87,36 bilhões em março, correspondendo a 184.627 devedores, entre pessoas físicas e empresas. Os estados com maior peso nessa dívida são Paulo, com R$ 38,3 bilhões, e Rio de Janeiro, com R$ 12,1 bilhões.

Paulo Braga, um dos sócios do açougue Braga & Filhos em Macapá, ficou surpreso quando soube que deve ao INSS R$ 33,13:

— Não pagamos porque a gente não sabia disso — espantou-se.

O mesmo aconteceu com João Fiorotto, dono da fábrica de calçados Bibano, de São Paulo, que tem uma dívida de R$ 29,31.

— Preciso falar com meu contador para saber o que é.

Francisco Teixeira, dono da Padaria e Confeitaria Acadêmico de Santa Cruz, no Rio, também está na lista suja do INSS, com uma dívida de R$ 305,85. Com seis empregados na padaria, ele diz desconhecer o valor. A história se repete com várias empresas, até mesmo conhecidas, como a Lojas Marisa, que aparece com um débito de R$ 451,28, e a Viação Itapemirim, com R$ 29,86. Ambas desconhecem as pendências.

O Ministério da Previdência afirmou que quando um crédito a seu favor é identificado, o devedor é informado por carta. Se, em 30 dias, o pagamento não for efetuado, ele passa a fazer parte da lista de débitos.

Diante da dificuldade da Previdência de recuperar esses créditos, o Conselho Nacional de Previdência Social, formado por representantes do governo e da sociedade, concluiu no mês passado um estudo em que recomendou a anistia para dívidas abaixo de R$ 5 mil. O grupo de trabalho traçou também um perfil dos devedores do INSS.

Segundo o levantamento, a medida beneficiaria 74.462 empresas que devem ao governo R$ 132,9 milhões, o que representa apenas 0,13% da dívida total. Com isso, seriam riscados do cadastro do INSS 93 mil créditos, sendo que 49,89% deles têm mais de dez anos. A proposta, no entanto, foi vetada até segunda ordem pelo Ministério da Fazenda, sob alegação de que a medida criaria uma cultura negativa e poderia abrir caminho para que a Procuradoria-Geral da Fazenda (PGFN) fosse obrigada a perdoar créditos tributários de grandes devedores.

Para o ex-secretário da Previdência Social Marcelo Estevão, o INSS não pode continuar tratando da mesma forma sonegadores, fraudadores e pequenos devedores. Ele lembrou que, em 1997, o governo anistiou as dívidas previdenciárias abaixo de R$ 1 mil. Até porque manter os nomes inscritos na dívida ativa tem um custo certamente superior a R$ 29.

— Além da limpeza do cadastro, sobrariam mais recursos para se chegar ao sonegador contumaz — disse ele, acrescentando que 85% da dívida do INSS estão nas mãos de apenas 6,86% das empresas. 

Setor público deve R$ 14 bi ao INSS e governo vai refinanciar os débitos

Não só pessoas físicas e empresas têm dívidas com o INSS. Órgãos públicos federais, estados e municípios também devem quantias gigantescas à Previdência Social. Para tentar resolver parte do problema, sobretudo do setor público, o governo, segundo o ministro da Previdência, Romero Jucá, vai refinanciar a dívida de estados e prefeituras.

O assunto está sendo discutido por uma equipe do Ministério da Fazenda e teria como objetivo aumentar a arrecadação do INSS, pois estados e municípios devedores não só não pagam o débito do passado como não recolhem as contribuições presentes.

— Vamos parcelar as dívidas de estados e municípios porque a situação em algumas cidades chegou a inviabilizar a gestão atual e a futura — disse Jucá.

Do total da dívida da Previdência Social de R$ 128 bilhões, os estados são responsáveis por R$ 4,5 bilhões. Já no caso dos municípios, são R$ 6,8 bilhões, e os órgãos públicos federais devem ao INSS R$ 2,75 bilhões. Ou seja, o setor público deve R$ 14,05 bilhões.

De acordo com dados do ministério, atualizados até março, a prefeitura de Campinas, por exemplo, que é uma cidade próspera do interior de São Paulo, tem uma dívida de R$ 315,5 milhões, enquanto a capital Manaus deve R$ 187,9 milhões. Já o estado de Santa Catarina deve R$ 261,8 milhões e o Estado do Rio, outros R$ 162,8 milhões.

Enquanto o governo pensa em beneficiar o setor público, pessoas como José de Ramos Pereira reclamam da burocracia do INSS. Dono da Grande Tinturaria Tijuca Ltda, no bairro de mesmo nome no Rio, Pereira tenta se aposentar há mais de um ano e não consegue. A empresa dele foi assaltada e parte dos documentos que comprovam os recolhimentos foi levada pelos ladrões.

Dívida de R$ 123,64 impede contribuinte de se aposentar

A Tinturaria — que emprega sete trabalhadores — aparece na lista de devedores do INSS, com uma dívida de R$ 123,64. Mas Pereira diz que desconhece o valor e que está em dia com as contribuições previdenciárias:

— Não sei dessa dívida. Fico indignado com o INSS, porque ao mesmo tempo tenho 35 anos e dois meses de contribuição para a Previdência e não consigo me aposentar.
   
Limpando o nome

CERTIDÃO: O contribuinte pode obter a Certidão Negativa de Débito (CND) com o INSS pela internet (www.mpas.gov.br), clicando em serviços. Caso não consiga por dever à Previdência, ainda que alguns centavos tenham de procurar um posto de atendimento do INSS para identificar o débito e pedir emissão da guia de recolhimento, que sai na hora.

BANCO: Após pagar no banco, deve-se voltar ao posto para provar o recolhimento e aguardar a emissão da CND, que leva até três dias úteis para ser obtida, dizem empresários.

PROVA: Se o contribuinte estiver em dia com o INSS e não conseguir a CND na internet, deve procurar um posto de atendimento e levar o comprovante do pagamento original.

JUSTIÇA: O consultor do Sebrae Andre Spinola diz que se o contribuinte não concordar com o valor cobrado pelo INSS pode ir à Justiça. Isso pode ser feito também se o empresário perder licitação, por exemplo, porque devia poucos reais ao INSS e estava na lista suja, sem direito à CND.